Grandes são os desertos, e tudo é deserto. Não são algumas toneladas de pedra ou tijolos ao alto Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes – Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma! Grandes são os desertos.
Não tirei bilhete para a vida, Errei a porta do sentimento, Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. Hoje não me resta, em véspera de viagem, Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, Hoje não me resta (à parte o incómodo de estar assim sentado) Senão saber isto: Grandes são os desertos, e é tudo deserto. Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.
Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem). Acendo o cigarro para adiar a viagem, Para adiar todas as viagens. Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade! Basta por hoje, gentes! Adia-te, presente absoluto! Mais vale não ser que ser assim.
Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro. E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.
Mas tenho que arrumar a mala, Tenho por força que arrumar a mala, A mala. Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, o destino.
Tenho que arrumar a mala de ser. Tenho que existir a arrumar malas. A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. Olho para o lado, verifico que estou a dormir. Sei só que tenho que arrumar a mala, E que os desertos são grandes e tudo é deserto, E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.
Ergo-me de repente todos os Césares. Vou definitivamente arrumar a mala. Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la; Hei-de vê-la levar de aqui, Hei-de existir independentemente dela.
Grandes são os desertos e tudo é deserto. Salvo erro, naturalmente. Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!
Amendoeiras, nome vulgar de algumas árvores amigdalíferas, da família das Rosáceas, cujos frutos são as amêndoas. Eu costumava parti-las com uma pedra grande, mesmo à bárbaro. Os meus avós apanhavam-nas e tratavam delas. E depois era só jogar a mão apanhar umas quantas, pegar numa pedra grande e desfrutar.
Esta lenda eu ouvia-a varias vezes na escola na minha infância...
"Há muitos e muitos séculos, antes de Portugal existir e quando o Al-Gharb pertencia aos árabes, reinava em Chelb, a futura Silves, o famoso e jovem rei Ibn-Almundim que nunca tinha conhecido uma derrota. Um dia, entre os prisioneiros de uma batalha, viu a linda Gilda, uma princesa loira de olhos azuis e porte altivo. Impressionado, o rei mouro deu-lhe a liberdade, conquistou-lhe progressivamente a confiança e um dia confessou-lhe o seu amor e pediu-lhe para ser sua mulher. Foram felizes durante algum tempo, mas um dia a bela princesa do Norte caiu doente sem razão aparente. Um velho cativo das terras do Norte pediu para ser recebido pelo desesperado rei e revelou-lhe que a princesa sofria de nostalgia da neve do seu país distante. A solução estava ao alcance do rei mouro, pois bastaria mandar plantar por todo o seu reino muitas amendoeiras que quando florissem as suas brancas flores dariam à princesa a ilusão da neve e ela ficaria curada da sua saudade. Na Primavera seguinte, o rei levou Gilda à janela do terraço do castelo e a princesa sentiu que as suas forças regressavam ao ver aquela visão indiscritível das flores brancas que se estendiam sob o seu olhar. O rei mouro e a princesa viveram longos anos de um intenso amor esperando ansiosos, ano após ano, a Primavera que trazia o maravilhoso espectáculo das amendoeiras em flor."